17 November 2013

Playing cards with Matilda Temperley (Portuguese version)





Desde que me mudei pra Londres, na verdade, desde meados do ano passado, eu passei a ter um verdadeiro fascínio por pessoas que transitam entre duas carreiras profissionais ou aquelas que resolveram mudar radicalmente de área. Quem acompanha o Gato sabe que gosto de coisas que inspiram - e a palavra ‘coisa’ em si é ótima por poder encaixar um mundo de sentidos dentro dela. E inspiração pode vir de tantos lugares e de tantas ‘coisas’, certo? Mas o que me fascina mesmo são aqueles momentos em que a gente se vê inspirado por alguém. Não precisa ser alguém famoso ou distante (o ícone). Estou falando de pessoas reais, daquelas que a gente pode sentar junto numa mesa de bar, num café, ou trocar mensagens virtuais sem lá muitos pudores.

Blogs há centenas de milhares, a gente sabe bem disso e há blogs de todos os tipos, fato. Muita gente lê blogs à procura de informação, há quem pouco se importe com a opinião alheia (mito!). Eu não sou dessas. Eu procuro blogs que possam me inspirar de alguma forma, no meu vestir-se, no meu olhar sobre uma exposição, sobre uma obra de arte, sobre um livro, um objeto e por aí vai. Engana-se demais quem pensa que essas plataformas possam passar mera informação descolada de opinião pessoal, todo blog é escrito em primeiro pessoa, mesmo quando são várias escrevendo num mesmo site.

Certo dia, enquanto divagava sobre pessoas inspiradoras ao meu redor, me dei conta de que tenho a sorte de conhecer várias figuras encantadoras, bem próximas, bem reais. Resolvi, então, entrevistá-las (me sentindo a repórter...)! E, não pra minha surpresa, todas as pessoas com quem comentei sobre o desejo de gravar um bate-papo e postar no meu blog (leia-se entrevistar, claro) foram super receptivas e generosas! Sabem aquele ditado ‘amigos, amigos, negócios à parte’? Não funciona bem assim, viva!!
Esse é o contexto por trás das entrevistas que aparecerão por aqui vez em quando. Bem vez em quando, adianto.
Às vezes a gente fica tão fissurado (Freud) por algumas pessoas, especialmente nesse mundo de blogueiras e blogs e autopromoção, que acaba esquecendo de olhar a nossa volta, deixando passar a oportunidade de conhecer mais de perto fontes de inspiração que podem (e querem) realmente te inspirar com afeto e diálogo de verdade! Já me frustrei muito com gente que eu julgava inspiradora e que, no final das contas, só conseguia enxergar o próprio espelho...

Foi assim que cheguei até Matilda Temperley, fotógrafa inglesa radicada em Londres. Eu a conheci no jantar de aniversário de uma grande amiga (também extremamente inspiradora, vocês verão) e logo de cara me encantei com a conversa e com seu tom de voz. Nascida e criada numa idílica fazenda de cidra em Somerset, no sudoeste da Inglaterra, Matilda carrega consigo um ar quase bucólico nos traços delicados do seu rosto e no jeito sereno de contar suas histórias (entre vícios de linguagem e muitas risadas). Ela aceitou bater um papo comigo sobre como foi seu processo de mudança da carreira acadêmica em Ciências Biológicas para a fotografia, sobre suas inspirações nessa arte, seu trabalho com moda, a solidão de quem precisa ficar horas em frente ao computador, sobre sapatos e o difícil trabalho (isso é sério) de ficar trancada por dois meses em estúdio fotografando as criações de Manolo Blahnik para um novo livro do designer.

Pra deixar as coisas mais fáceis pra vocês, eu fiz duas versões da entrevista, essa em português e uma em inglês, idioma da minha conversa com ela (e da minha vida aqui) e que será publicada em seguida. 

Espero que sintam-se inspiradas!




Em um pub em Camden

Gabi: Me conte um pouco sobre em que carreira você estava antes de migrar pra fotografia...

Matilda: Bom, eu estudei Ciências [Sciences] provavelmente porque eu era boa nisso, foi algo que veio com certa naturalidade pra mim. Mas eu sempre quis fazer coisas criativas, estudar Artes... Quando eu estava na faculdade todo meu trabalho artístico foi roubado de mim por uma figura bem esquisita (ele roubou todos os meus trabalhos!) e então eu simplesmente parei de fazer qualquer coisa relacionada a Artes e me concentrei em Ciências. E minha família, bastante ligada ao meio acadêmico, sempre me dizia pra fazer algo nessa área, não havia outro caminho senão fazer algo que fosse acadêmico.

G: Mas você sempre carregou consigo esse desejo de trabalhar com artes, esse amor pelas artes?

M: Sim, bom, quando eu peguei meu primeiro diploma em Ciências eu tive nota máxima, então quando você tem sucesso em algo você meio que continua naquilo, eu não sabia bem ao certo o que eu queria fazer, então fui fazer o mestrado em Doenças Tropicais [Tropical Diseases é uma área bem reconhecida em Ciências Biológicas por aqui]... Eu acho essa área bem interessante, doenças tropicais é um tema completamente fascinante e eu amava o processo de aprendizado e o conhecimento que adquiria, mas o lado prático na verdade envolvia mais questões de estatística e etc., então não era um trabalho tão divertido quanto outros trabalhos poderiam ser. Eu era super jovem na época e queria fazer tudo, e sentir tudo... Mas quando ia pro trabalho de campo eu estava constantemente sozinha na África com um trabalho que era super específico, era bastante solitário. Bom, eu tive algumas experiências ruins [num período de duas semanas de trabalho de campo] e eu sempre tive comigo essa ideia de querer experimentar outras coisas. Sempre que refletia sobre o que gostaria de fazer da vida eu acabava pensando naquilo que eu gostaria de fazer quando criança e eu sempre amei fotografia. Nunca achei que fosse uma carreira propriamente dita [risos] e que pudesse ganhar dinheiro com isso... E eu sempre quis ser trapezista! Bom, quando eu estava na África eu tive algumas experiências bem ruins, várias, na verdade, e eu me perguntei ‘o que eu estou fazendo aqui?’. Então voltei pra Inglaterra, me demiti do meu emprego em Uganda, estava com pressa... Mesmo lá eu sempre carregava minha câmera comigo no trabalho, porque pensava poder contar uma história mais rápido com a câmera do que com meu trabalho acadêmico, o que não é de fato verdade, mas naquela época eu sentia que era assim, porque você tira algumas fotos e mostra pra alguém e tudo parece mais compreensível, em Ciências talvez você leve um ano fazendo a mesma coisa...
Então, sim, eu acreditava que com a câmera eu poderia contar uma historia mais rápido, definitivamente não é verdade, mas eu achava que era. Então eu resolvi fotografar coisas, doenças tropicais, seria mais ou menos a mesma coisa, mas eu estaria contando a história nos meus termos e mais rapidamente.

G: E o lado prático da mudança, como foi?

M: Eu me mudei de volta pra Londres pensando ‘ok, vou ser uma fotografa’, mas eu era uma cientista e era algo que eu carreguei comigo por alguns anos. Então eu resolvi acompanhar alguns fotógrafos [como um estagiário de laboratório faria] achando que era muito fácil, pensando que fotografia fosse algo que eu pudesse aprender muito facilmente. Eu tive a sorte de conseguir um auxílio do Arts Council [conselho nacional de artes do Reino Unido] no início pra fazer uma grande exposição sobre o circo, na época eu estava treinando o trapézio! Então comecei a ser contratada por pessoas e ao invés de dizer ‘não’ eu dizia que ‘sim, eu posso fazer isso’, o que me ajudou com a prática, pedi ajuda a alguns profissionais e emprestei um espaço pra usar como estúdio, então eu estava literalmente praticando. Eu me perguntava ‘em quem eu estou interessada’? E eu sempre pensava em dançarinos. Eu amo dança, amo dançarinos, então [eu os convidava] e eles vinham e dançavam no estúdio enquanto eu os fotografava. Eu basicamente fotografava coisas que eu amava até que, eventualmente, as pessoas começaram a me pagar pra fotografar coisas que eu amava [risos]. Eu pegava outros trabalhos que apareciam também, mas hoje eu posso ser mais seletiva. Demorou alguns anos ser como é hoje, eu era tão impaciente naquela época, eu não queria parar, então eu já estava inserida numa carreira propriamente dita. Provavelmente eu teria aprendido mais se tivesse observado outros profissionais por mais um ano, mas eu era muito impaciente.

G: Ah, a impaciência. Eu estou na academia há 7 anos e nunca trabalhei em outra área e, hoje, quando me vejo experimentando outras coisas eu quero resultados rápidos e tenho a sensação de que tenho passado a maior parte do meu tempo dentro de bibliotecas e salas de leitura do que experimentando o mundo na prática [exageros à parte]. Você sentia esse tipo de ansiedade quando resolveu mudar de área?

M: Ah eu tinha muita ansiedade e essa mudança foi o momento de maior pressão que eu jamais havia sentido, desistir de um emprego no qual havia trabalhado a vida toda pra fazer algo totalmente instável... Quando você passa tanto tempo na academia e decide tentar algo diferente você sente uma certa pressão pela idade, eu acho, então quando você decide mudar de área você espera estar, não sei, 8 anos adiantada do tempo em que você realmente está. É bem difícil no começo, eu era bem ingênua e achava que tudo aconteceria super rápido apenas se trabalhasse bastante.

G: Há quanto tempo você migrou de vez, então?

M: Em 2007. Na verdade, em retrospectiva, não passei tanto tempo assim em Ciências. Eu fiz a graduação na área e o mestrado e já fui direto pro meu emprego na África, eu fui um tanto mimada nesse sentido, consegui emprego logo depois do mestrado, não precisei subir os degraus, entende?

G: Entendo. Bom, nas suas fotografias eu vejo o corpo humano bastante em evidência, em todas as formas, tipos, estranhezas, belezas, etc.

M: Sim, eu amo o circo e ao mesmo tempo em que me tornava fotógrafa eu estava praticando o trapézio, eu quebrei vários ossos e várias partes do meu corpo, estava definitivamente muito velha pra começar o trapézio! [risos] Mas eu sempre tive vários amigos no circo, eu amo a fisicalidade disso, acho que [as imagens do corpo] vem daí. Gosto de pessoas extraordinárias, de entender porquê elas fazem o que fazem, vivem como vivem, de onde elas vem. É extraordinário ver as modificações que as pessoas fazem no seu corpo... O comprometimento que as pessoas tem aqui em Londres de mudar seus corpos completamente... Uma das meninas que fotografei tatuou de preto seu globo ocular, (...) ela mudou tudo em seu corpo... Entender a psicologia por trás disso é o que faz fotografia tão interessante, porque as pessoas são como são... Como fotógrafa eu estou interessada em pessoas únicas.

G: E qual a sua relação com padrões de beleza? Digo esses parâmetros normativos, ocidentais aos quais estamos expostos.

M: Bom, eu adoraria ser uma fotógrafa documentarista, foi por isso que entrei pra essa área, mas eu me dei conta de que nunca poderia ser uma, porque eu não quero capturar as coisas como elas são, mas, sim, procurar a beleza nas coisas [clique aqui pra ver alguns dos seus retratos], o que é relativamente diferente. Eu quero fotografar alguém em seu melhor... Uma das coisas mais importantes pra mim quando fotografo alguém é que a pessoa se sinta feliz com aquela imagem, porque é como se estivesse pegando um pedacinho dela, sinto uma responsabilidade nisso... Então acho que não tenho um padrão de beleza estipulado que eu consiga reconhecer, não tenho uma visão convencional de beleza.

G: E como as pessoas respondem às suas fotografias?

M: Elas respondem super bem! Mas eu só fotografo alguém se consigo me conectar a essa pessoa. Quando alguém chega no estúdio você tem cerca de 10 minutos pra encontrar um ponto em comum com a pessoa, na verdade pra eu e a pessoa nos avaliarmos, nos conhecermos, porque [retrato] é um tipo de fotografia bem intenso... Nesse sentido, você pode perguntar qualquer coisa a pessoa quando ela vem pra posar pra você, em ensaio de moda não é assim, isso só acontece nas minhas sessões de retratos, os trabalhos de moda são completamente diferente. Nos retratos as pessoas estão super abertas, elas te deixam, como fotógrafo, ser tipo um voyeur.

G: Falando nisso, eu sei que você também faz fotografias de moda e tem editoriais em várias revistas [clique aqui pra ver alguns deles]. Qual a sua relação com a moda?

Matilda: Minha irmã é uma designer de moda [Alice Temperley, da Temperley London, que veste a Kate Middleton, por exemplo] então eu sempre estive próxima da área. Se tenho interesse nisso? Não muito. Eu aprecio a beleza e posso apreciar roupas de um modo geral, mas se isso me inspira ou se fico empolgada com essas coisas? Não mesmo. A não ser que esteja fazendo um trabalho e daí, sim, eu me divirto, eu me inspiro e me conecto. Mas eu sempre estou mal arrumada, não poderia ligar muito pra moda nessa sentido. Eu não sou alguém que é inspirada por moda. Mas se você me der uma modelo e algumas roupas eu ficarei inspirada a conseguir as melhores imagens com aquilo, as mais interessantes.

G: E a sensibilidade pra se fazer esse tipo de fotografia é completamente diferente, imagino...

M: A diferença é que pra um retrato você quer se aproximar da psique da pessoa, nossa isso soou muito pretencioso, mas você quer ver quem a pessoa é e seu corpo, mas quando você está usando uma modelo você não quer ver quem ela é, você quer usá-la como uma tela em branco pra fazer com quem ela seja quem você quer que ela seja, você quer que ela represente outra coisa.

G: A sua relação com  as pessoas que você fotografou, o projeto sobre o circo, os retratos, afetou ou afeta de alguma forma a sua relação com seu próprio corpo?

M: Eu gostaria de dizer que ‘sim, me inspirou a ficar super em forma’ e eu constantemente me sinto inspirada a entrar em forma, mas eu sou muito boa em quebrar ossos! [ela já quebrou um joelho, os pulsos, costelas e passou por algumas cirurgias por conta disso] Mas eu adoraria voltar para as árvores [onde praticava o trapézio], gostaria de poder dançar... Eu me tornei mais consciente com relação a cuidar do meu corpo e por isso, acho, me sinto inspirada a observar pessoas que tem uma fisicalidade incrível.

G: Eu imagino que você deva estar sempre rodeada de pessoas, por conta do trabalho, não? Meu maior problema com meu doutorado é que acabo ficando muito tempo sozinha, porque é preciso, você precisa sentar e pensar e ler e escrever...

M: Mas, sabe, meu trabalho não é tão sociável quanto se imagina. Eu não fotografo todos os dias, então passo muito tempo sozinha no escritório, acho que as pessoas subestimam quanto tempo se passa fazendo edição de imagens e essas coisas, então você acaba passando muito tempo no computador.

G: Eu sinto uma enorme dificuldade em socializar na universidade, porque, na minha área, por exemplo, não temos laboratório ou pesquisa de campo e a própria política universitária [doutorandos não cursam disciplinas] faz com que a gente se isole demais e então quando você tenta socializar com colegas percebe que eles não sabem ou não se interessam em dividir...

M: Sim! E essa foi uma das razões pelas quais eu decidi abandonar a academia. Porque eu imaginava que [com fotografia] seria mais social e teria resultados mais rápidos, em alguns aspectos isso é verdade, mas em outros não. Como fotógrafa sou meu próprio chefe, faço o que quero na hora que quero, trabalho por mais tempo por ser freelancer, mas ganho duas vezes mais do que ganhava como cientista... Mas não sou tão sociável, sabe. Como eu disse, meu trabalho envolve muito mais o computador do que parece, então, não sei, talvez a grama seja mesmo sempre mais verde do outro lado... Mas, sim, uma das razões pelas quais deixei as Ciências era o trabalho muito solitário.

G: Entendo bem. Por essa razão quis criar o blog, porque apesar de ainda estar no computador eu posso realmente falar com as pessoas sobre coisas que elas possam entender e se conectar. E assim elas podem se conectar comigo também.

M: Sim! Sabe, é assim com fotografia também, apesar de eu estar trabalhando sozinha, as pessoas podem realmente ter reações com relação aquilo. E com o que você faz como doutoranda e o que eu fazia como cientista há apenas um número pequeno de pessoas com quem se pode realmente ter uma conversa, por ser tão específico.





De volta ao escritório

G: [Pedi se poderia fazer algumas fotos dela] Eu adoro fotografia em preto e branco, acho que tem uma estética super trabalhada. Você acha que uma boa imagem depende mais do equipamento - locação, iluminação, modelo, paisagem – ou no fotógrafo?

M: Uma imagem excepcional depende do fotógrafo, mas uma imagem boa depende mais da câmera, eu acho. [risos] Na verdade acho que seja meio a meio. Eu acabo de pegar um trabalho novo que está me deixando meio apavorada, eu vou fotografar o novo livro do Manolo Blahnik. Eles acabaram de me entregar uma quantidade enorme de sapatos. Estou um pouco aterrorizada! [risos]

G: Porque?

M: Porque terei que ficar fechada no estúdio fotografando sapatos!

G: Mas você gosta de sapatos?

M: Não muito. Na verdade, bem, eu gosto de sapatos, amo a estrutura deles, mas eu tenho dois pares de sapatos e ambos estão no meu escritório. Então eu não sou lá uma connaisseur de sapatos, eu os aprecio, mas só consigo usar sapatos sem salto pra ser sincera... [risos]





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